domingo, 22 de agosto de 2010

Primeiro Mistério

Ele parecia bem mais com o diabo do que com gente. Vade retro. Não era assim que achavam as mulheres. Aterrador, um mau. Ele não era assim. Às mulheres se chegava de manso, seu fraco eram viúvas e casadas, nunca se aproveitou de inocentes, as virgens, com ele estavam seguras, nunca teve um filho que não protegesse. Por isso arruinou-se, jogou fora o que juntou. Viam-no como nunca foi. Eu o afastei para proteger-me. Não sei bem que idade tinha quando o conheci. Era meu março, o fim do meu verão. Quando ele se foi, em poucos anos tinha envelhecido vinte. Meu rosto, duro, queimado, perdeu a claridade anterior, meus cabelos descoraram. Mesmo assim, me olhando, ele se sentia perturbado. Vinha de dentro de mim uma serenidade como a que se vê em imagens de santo, as mais toscas. Um som de eternidade. Tinha a consciência tranquila: para se entender comigo havia feito o que podia. Não fora fácil, levara século a primeira tentativa. Eu mantive um anteparo que ele teve que vencer, um resguardo invisível de compostura e silêncio. Olhava-o de frente, com olhos severos como o de um senhor. Podia vê-lo se quisesse. E nunca houve lugar onde ele tenha estado mais. Poliu o chão com os sapatos, indo e vindo. Eu podia olhar ao menos para a porta, mas não, era como se não existisse. Nunca lhe pedi um grão de milho, uma folha de capim. Como podia? Absurda mulher. Nunca entendeu minhas contas, eu possuía o dom da multiplicação. Ele também, a seu modo. Passou a buscar mulheres parecidas comigo, não achou. Espalhou intenção (falsa) de casar com pessoa instruída. Continuou sem ser olhado. Resolveu vir às falas. Recebi-o bem, ofereci água ou café. Como ele ia pegar um copo ou uma xícara se as mãos tremiam? Não pronunciou uma palavra das que preparara. Tinha um anzol na língua, ficou mudo. Disse que tinha errado muito, ia acertar sua vida, constituir família. Respondi que ele já tinha tantas que uma a mais não ia fazer diferença. Fingiu-se de surdo e saiu de orelhas queimando, derrubando tudo, varrendo os caminhos em que jamais fora visto. Não me abalou. Ficasse rondando até perder a paciência e entrar porta adentro perguntando, prometendo mundos e fundos, se queria viver com ele. Decidiu agarrar-me de uma vez, mas deu por si andando por aí como se houvesse sido arrebatado. Sem dúvida tinha alguma vergonha. Resolveu tomar o caminho da justiça. Assediou-me só para humilhar-me, para destruir meu orgulho, não conseguiu. É verdade que não falou, nunca mais, em deitar-se comigo. Reclamou, fez censuras, insultou-me, insistiu com toda soberba. Uma vez lhe havia dito que não deixava de ter certa sabedoria: fala do que conhece. Decidiu propor-me casamento. Não teve boca para dizer as palavras. Teve ódio de mim. Detestou seus filhos porque não eram meus. Com o tempo o ódio foi passando, veio uma espécie de enlevo, até de gratidão. Acabou achando que fui sua transcendência, sua parte de espanto numa vida tão pobre de mistério.

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